O texto reflete exame minucioso
do Projeto de Lei 1876/99, revisado pela Câmara dos Deputados na semana
passada, à luz dos compromissos da Presidenta Dilma Rousseff assumidos em sua
campanha nas eleições de 2010.
Para cumprir seu compromisso de
campanha e não permitir incentivos a mais desmatamentos, redução de área de
preservação e anistia a crimes ambientais, a Presidenta Dilma terá que reverter
ou recuperar, no mínimo, os dispositivos identificados abaixo. No entanto, a
maioria dos dispositivos são irreversíveis ou irrecuperáveis por meio de veto
parcial.
A hipótese de vetos pontuais a
alguns ou mesmo a todos os dispositivos aqui comentados, além de não resolver
os problemas centrais colocados por cada dispositivo (aprovado ou rejeitado),
terá como efeito a entrada em vigor de uma legislação despida de clareza, de
objetivos, de razoabilidade, de proporcionalidade e de justiça social.
Vulnerável, pois, ao provável questionamento de sua constitucionalidade. Além
disso, deixará um vazio de proteção em temas sensíveis como as veredas na
região de cerrado e os mangues.
Para preencher os vazios fala-se
da alternativa de uma Medida Provisória concomitante com a mensagem de veto
parcial. Porém esta não é uma solução, pois devolve à bancada ruralista e à
base rebelde na Câmara dos Deputados o poder final de decidir novamente sobre a
mesma matéria. A Câmara dos Deputados infelizmente já demonstrou por duas
vezes - em menos de um ano - não ter compromisso e responsabilidade para com o
código florestal. Partidos da base do governo como o PSD, PR, PP, PTB, PDT
capitaneados pelo PMDB, elegeram o código florestal como a “questão de honra”
para derrotar politicamente o governo por razões exóticas à matéria.
Seja por não atender ao interesse
público nacional por uma legislação que salvaguarde o equilíbrio ecológico, o
uso sustentável dos recursos naturais e a justiça social, seja por ferir
frontalmente os princípios do desenvolvimento sustentável, da função social da
propriedade rural, da precaução, do interesse público, da razoabilidade e
proporcionalidade, da isonomia e da proibição de retrocesso em matéria de
direitos sociais, o texto aprovado na Câmara dos Deputados merece ser vetado na
íntegra pela Presidenta da República.
Ato contínuo deve ser constituído
uma força tarefa para elaborar uma proposta de Política Florestal ampla para o
Brasil a ser apresentada no Senado Federal e que substitua o atual código
florestal elevando o grau de conservação das florestas e ampliando de forma
decisiva as oportunidades para aqueles que desejam fazer prosperar no Brasil
uma atividade rural sustentável que nos dê orgulho não só do que produzimos,
mas da forma como produzimos.
Enquanto esta nova lei é criada,
é plenamente possível por meio da legislação vigente e de regulamentos
(decretos e resoluções do CONAMA) o estabelecimento de mecanismos de viabilizem
a regularização ambiental e a atividade agropecuária, principalmente dos pequenos
produtores rurais.
13 razões para o Veto Total
1. Supressão do artigo
primeiro do texto aprovado pelo Senado que estabelecia os princípios jurídicos
de interpretação da lei que lhe garantia a essência ambiental no caso de
controvérsias judiciais ou administrativas. Sem esse dispositivo, e
considerando-se todos os demais problemas abaixo elencado neste texto, fica
explícito que o propósito da lei é simplesmente consolidar atividades
agropecuárias ilegais em áreas ambientalmente sensíveis, ou seja, uma lei de
anistia florestal. Não há como sanar a supressão desses princípios pelo
veto.
2. Utilização de conceito incerto
e genérico de pousio e supressão do conceito de áreas abandonadas e
subutilizadas. Ao definir pousio como período de não cultivo (em tese para
descanso do solo) sem limite de tempo (Art. 3 inciso XI), o projeto permitirá
novos desmatamentos em áreas de preservação (encostas, nascentes etc.) sob a
alegação de que uma floresta em regeneração (por vezes há 10 anos ou mais) é,
na verdade, uma área agrícola “em descanso”. Associado ao fato de que o
conceito de áreas abandonadas ou subutilizadas, previsto tanto na legislação
hoje em vigor como no texto do Senado, foi deliberadamente suprimido, teremos
um duro golpe na democratização do acesso e da terra, pois áreas
mal-utilizadas, possuídas apenas para fins especulativos, serão do dia para a
noite terras “produtivas em descanso”. Essa brecha enorme para novos
desmatamentos não pode ser resolvida com veto.
3. Dispensa de proteção de 50
metros no entorno de veredas (inciso XI do ART. 4º ART). Isso significa a
consolidação de ocupações ilegalmente feitas nessas áreas como também novos
desmatamentos no entorno das veredas hoje protegidas. Pelo texto
aprovado, embora as veredas continuem sendo consideradas área de preservação,
elas estarão na prática desprotegidas, pois seu entorno imediato estará sujeito
a desmatamento, assoreamento e possivelmente a contaminação com agroquímicos.
Sendo as veredas uma das principais fontes de água do Cerrado, o prejuízo é
enorme, e não é sanável pelo veto presidencial.
4. Desproteção às áreas úmidas
brasileiras. Com a mudança na forma de cálculo das áreas de preservação ao
longo dos rios (art.4o), o projeto deixa desprotegidos, segundo cálculos do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), 400 mil km2 de várzeas e
igapós. Isso permitirá que esses ecossistemas riquíssimos possam ser ocupados
por atividades agropecuárias intensivas, afetando não só a biodiversidade como
a sobrevivência de centenas de milhares de famílias que delas fazem uso
sustentável.
5. Aumento das possibilidades
legais de novos desmatamentos em APP - O novo texto (no §6º do Art4o)
autoriza novos desmatamentos indiscriminadamente em APP para implantação de
projetos de aquicultura em propriedades com até 15 mólulos fiscais (na
Amazônia, propriedades com até 1500ha – na Mata Atlântica propriedades com mais
de mil hectares) e altera a definição das áreas de topo de morro reduzindo
significativamente a sua área de aplicação (art.4º, IX). Em nenhum dos dois
casos o Veto pode reverter o estrago que a nova Lei irá causar, ampliando as
áreas de desmatamento em áreas sensíveis.
6. Ampliação de forma ampla e
indiscriminada do desmatamento e ocupação nos manguezais ao separar os
Apicuns e Salgados do conceito de manguezal e ao delegar o poder de ampliar e
legalizar ocupações nesses espaços aos Zoneamentos Estaduais, sem qualquer
restrição objetiva (§§ 5º e 6º do art. 12). Os estados terão amplos
poderes para legalizar e liberar novas ocupações nessas áreas. Resultado –
enorme risco de significativa perda de área de manguezais que são cruciais para
conservação da biodiversiadade e produção marinha na zona costeira. Não tem com
resgatar pelo Veto as condições objetivas para ocupação parcial desses
espaços tão pouco o conceito de manguezal que inclui apicuns e salgados.
7. Permite que a reserva legal na
Amazônia seja diminuída mesmo para desmatamentos futuros, ao não estabelecer,
no art. 14, um limite temporal para que o Zoneamento Ecológico Econômico
autorize a redução de 80% para 50% do imóvel. A lei atual já traz essa
deficiência, que incentiva que desmatamentos ilegais sejam feitos na
expectativa de que zoneamentos futuros venham legaliza-los, e o projeto não
resolve o problema.
8. Dispensa de recomposição de
APPs. O texto revisado pela Câmara ressuscita a emenda 164 (aprovada na
primeira votação na Câmara dos Deputados, contra a orientação do governo) que
consolida todas as ocupações agropecuárias existentes às margens dos rios, algo
que a ciência brasileira vem reiteradamente dizendo ser um equívoco gigantesco.
Apesar de prever a obrigatoriedade de recomposição mínima de 15 metros para
rios inferiores a 10 metros de largura, fica em aberto a obrigatoriedade de
recomposição de APPs de rios maiores, o que gera não só um possível paradoxo
(só partes dos rios seriam protegidas), como abre uma lacuna jurídica imensa, a
qual só poderá ser resolvida por via judicial, aumentando a tão indesejada
insegurança jurídica. O fim da obrigação de recuperação do dano ambiental
promovida pelo projeto condenará mais de 70% das bacias hidrográficas da Mata
Atlântica, as quais já tem mais de 85% de sua vegetação nativa desmatada. Ademais,
embora a alegação seja legalizar áreas que já estavam “em produção” antes de
supostas mudanças nos limites legais, o projeto anistia todos os
desmatamentos feitos até 2008, quando a última modificação legal foi em 1986.
Mistura-se, portanto, os que agiram de acordo com a lei da época com os que deliberadamente
desmataram áreas protegidas apostando na impunidade (que o projeto visa
garantir). Cria-se, assim, uma situação anti-isonômica, tanto por não fazer
qualquer distinção entre pequenos e grandes proprietários em situação
irregular, como por beneficiar aqueles que desmataram ilegalmente em detrimento
dos proprietários que o fizeram de forma legal ou mantiveram suas APPs
conservadas. É flagrante, portanto, a falta de razoabilidade e
proporcionalidade da norma contida no artigo 62, e um retrocesso monumental
na proteção de nossas fontes de água.
9. Consolidação de pecuária
improdutiva em encostas, bordas de chapadas, topos de morros e áreas em
altitude acima de 1800 metros (art. 64) o que representa um grave problema
ambiental principalmente na região sudeste do País pela instabilidade das
áreas (áreas de risco), inadequação e improdutividade dessas atividades nesses
espaços. No entanto, o veto pontual a esse dispositivo inviabilizará atividades
menos impactantes com espécies arbóreas perenes (café, maçã dentre outras) em
pequenas propriedades rurais, hipóteses em que houve algum consenso no debate
no Senado. O Veto parcial resolve o problema ambiental das encostas no entanto
não resolve o problema dos pequenos produtores.
10. Ausência de mecanismos que
induzam a regularização ambiental e privilegiem o produtor que preserva em
relação ao que degrada os recursos naturais. O projeto revisado pela
Câmara suprimiu o art. 78 do Senado, que vedava o acesso ao crédito rural aos
proprietários de imóveis rurais não inscritos no Cadastro Ambiental Rural - CAR
após 5 anos da publicação da Lei. Retirou também a regra que vedava o
direcionamento de subsídios econômicos a produtores que tenham efetuado
desmatamentos ilegais posteriores a julho de 2008. Com isso, não só não haverá
instrumentos que induzam a adesão aos Programas de Regularização Ambiental,
como fica institucionalizado o incentivo perverso, que premia quem descumpre
deliberadamente a lei. Propriedades com novos desmatamentos ilegais poderão
aderir ao CAR e demandar incentivos para recomposição futura. Somando-se ao
fato de que foi retirada a obrigatoriedade de publicidade dos dados do CAR,
este perde muito de seu sentido. Um dos únicos aspectos positivos de todo
projeto foi mutilado. Essa lacuna não é sanável pelo veto. A lei perde um dos
poucos ganhos potenciais para a governança ambiental.
11. Permite que imóveis de até 4
módulos fiscais não precisem recuperar sua reserva legal (art.68), abrindo
brechas para uma isenção quase generalizada. Embora os defensores do
projeto argumentem que esse dispositivo é para permitir a sobrevivência de
pequenos agricultores, que não poderiam abrir mão de áreas produtivas para
manter a reserva, o texto não traz essa flexibilização apenas aos agricultores
familiares, como seria lógico e foi defendido ao longo do processo legislativo
por organizações socioambientalistas e camponesas. Com isso, permite que mesmo
proprietários que tenham vários imóveis menores de 4 MF - e, portanto,
tenham terra mais que suficiente para sua sobrevivência - possam se isentar da
recuperação da RL. Ademais, abre brechas para que imóveis maiores do que esse
tamanho, mas com matrículas desmembradas, se beneficiem dessa isenção. Essa
isenção fará com que mais de 90% dos imóveis do país sejam dispensados de
recuperar suas reservas legais e jogaria uma pá de cal no objetivo de
recuperação da Mata Atlântica, pois, segundo dados do Ipea, 67% do passivo de
reserva legal está em áreas com até 4 módulos.
12. Cria abertura para discussões
judiciais infindáveis sobre a necessidade de recuperação da RL (art.69). A
pretexto de deixar claro que aqueles que respeitaram a área de reserva legal de
acordo com as regras vigentes à época estão regulares, ou seja, não precisam
recuperar áreas caso ela tenha sido aumentada posteriormente (como ocorreu em
áreas de floresta na Amazônia, em 1996), o projeto diz simplesmente que não
será necessário nenhuma recuperação, e permite que a comprovação da legalidade
da ocupação sejam com “descrição de fatos históricos de ocupação da região,
registros de comercialização, dados agropecuários da atividade”. Ou seja, com
simples declarações o proprietário poderá se ver livre da RL, sem ter que
comprovar com autorizações emitidas ou imagens de satélite que a área
efetivamente havia sido legalmente desmatada.
13. Desmonte do sistema de
controle da exploração de florestas nativas e transporte de madeira no País. O
texto do PL aprovado permite manejo da reserva legal para exploração florestal
sem aprovação de plano de manejo (que equivale ao licenciamento obrigatório
para áreas que não estão em reserva legal), desmonta o sistema de controle de
origem de produtos florestais (DOF – Documento de Origem Florestal) ao permitir
que vários sistemas coexistam sem integração. A Câmara rejeitou o parágrafo 5º
do art. 36 do Senado o que significa a dispensa de obrigação de integração dos
sistemas estaduais com o sistema federal (DOF). Como a competência por
autorização para exploração florestal é dos estados (no caso de propriedades
privadas rurais e unidades de conservação estaduais) o governo federal perde
completamente a governança sobre o tráfico de madeira extraída ilegalmente
(inclusive dentro de Unidades de conservação federais e terras indígenas) e de
outros produtos florestais no País. Essa lacuna não é sanável pelo veto
presidencial.
Há ainda outros pontos
problemáticos no texto aprovado confirmado pela Câmara cujo veto é fundamental
e que demonstram a inconsistência do texto legal, que se não for vetado por
completo resultará numa colcha de retalhos.
A todos estes pontos se somam os
vícios de origem insanáveis deste PL como é o caso da definição injustificável
da data de 22 de julho de 2008 como marco zero para consolidação e anistia de
todas irregularidades cometidas contra o código florestal em vigor desde 1965.
Mesmo que fosse levado em conta a última alteração em regras de proteção do
código florestal esta data não poderia ser posterior a 2001, isso sendo muito
generoso, pois a última alteração em regras de APP foi realizada em 1989.
Por essas razões não vemos
alternativa sensata à Presidente da República se não o Veto integral ao PL
1876/99
André Lima, Raul Valle e Tasso
Azevedo
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