quarta-feira, 22 de maio de 2013

O extermínio da guerrilha. E da floresta


Em pouco mais de um semestre de 1972 o Exército brasileiro mobilizou 2,5 mil militares para combater menos de 60 guerrilheiros em uma área com menos de 10 mil quilômetros quadrados em torno da mitológica Serra das Andorinhas, no Araguaia paraense, na divisa com Goiás (hoje Tocantins).

Os militantes do Partido Comunista do Brasil começaram a migrar para a região três anos antes. Sua intenção era instalar um foco de resistência no local, como os seguidores de Fidel Castro haviam feito em Cuba. Protegido pela floresta densa e um terreno acidentado, o foco guerrilheiro devia crescer até fomentar uma guerra revolucionária contra a ditadura militar, até derrubá-la do poder, que exercia plenamente.

Três grupamentos foram estabelecidos, com 31, 23 e 15 integrantes. Quando o Exército os descobriu e começou a enfrentá-los, não havia dúvida alguma sobre a desproporção de meios. O principal comandante da operação, o general Antonio Bandeira, reconheceu que os guerrilheiros “utilizavam armas obsoletas e sofriam grande carência de munição”. A primeira força militar a caçá-los tinha 380 homens, dos quais 130 fuzileiros navais, tropa de elite.

Em três ou quatro meses o foco guerrilheiro perdera quase 20% do seu efetivo, formado principalmente por jovens, a maioria deles estudantes universitários, e de pouco traquejo para combates. Quando veio a ordem de acabar com tudo, sem deixar sobreviventes, a matança foi contínua e rápida.

O general Bandeira disse, em seu famoso relatório, agora acessível na íntegra, que a “guerra dos terroristas” se transformara em “exercício de adestramento” para seus comandados. Antes de 1972 acabar, porém, o Exército colocou alternadamente 2,5 mil homens no Araguaia, sendo dois mil da 3ª brigada.

Jargões e argumentos ideológicos à parte, o que a operação antiguerrilha demonstra, agora que os documentos oficiais começam a ser divulgados, é a sua incompetência operacional. Incompetência que não se deve tão somente – e nem principalmente – à falta de adestramento para atuar, mas ao condicionamento que sobre a atividade militar exerceu a doutrina da segurança nacional. Doutrina que transferiu seu eixo da ameaça externa à guerra contra o inimigo interno, os brasileiros adversários do regime.

Sem ela, com seu exagero na avaliação do inimigo e na antinomia feroz que impôs aos seus subordinados (o guerrilheiro era o terrorista, congenitamente mau, sem entranhas humanas, um animal a abater e liquidar), o Exército teria eliminado rapidamente o foco e preso seus integrantes, sem descer aos paroxismos de violência e selvageria. Seria uma história aberta, não um tema proibido, ao qual foram impostos anátemas implacáveis.

Reconhecer a fraqueza do inimigo e vencê-lo com o menor desgaste não interessava. Tanto ao comandante militar, que precisava adestrar a tropa em combate real (e não apenas a simulação, a regra nos quartéis, crescentemente politizados e sujeitos aos jogos de gabinete dos seus chefes), quanto a outros aproveitadores, nos negócios ou na política.

A revisão da história da guerrilha do Araguaia é, portanto, uma necessidade para a sociedade brasileira. Um país democrático não conviveria com os absurdos praticados nesse período, fruto do desvio de função das forças armadas, ou do seu exercício não só abusivo, mas também irracional e incompetente.

Um episódio novo surgiu na revisão que do tema faz a Comissão Nacional da Verdade. Trata-se de um Relatório de Apoio Aéreo, produzido em novembro de 1972, paralelamente ao documento do general Bandeira, pelo tenente-coronel Flarys Guedes Henriques de Araújo (que, já na reserva, foi secretário de segurança pública do Pará e do Ceará, conforme era praxe na época: fazer circular os oficiais de informação e combate).

Ele diz nesse relatório que as missões pretendidas pelo Comando Militar do Planalto, supervisor final das ações, “foram executadas no decorrer das operações; há a acrescentar àquele repertório o bombardeio de três áreas com bombas napalm e de emprego geral”.

É a primeira confirmação oficial da utilização desse produto, combinação de gasolina e resina que funcionava como poderoso desfolhante químico. Aplicado largamente pelos Estados Unidos na guerra do Vietnam, o napalm se revelou também um terrível agente de doenças humanas, incluindo o câncer (o que levou à sua proibição e recolhimento, mas não completo, como se veria).

O documentário americano Corações e Mentes provocou horror mundial ao mostrar crianças vietnamitas desesperadas já sem suas roupas e com suas peles queimando pela ação desse fósforo de alta combustão. Mesmo os militares americanos, que tiveram contato com o produto, vieram a morrer ou sofreram graves doenças.

Falava-se e às vezes surgiam denúncias sobre o uso do napalm por fazendeiros e outros pioneiros que abriam áreas novas na Amazônia nessa mesma época. A ordem em vigor era para botar abaixo a floresta, substituindo-a por pastagens e cultivos agrícolas, estimulados por outro combustível poderoso: os incentivos fiscais da Sudam. Com napalm, a árvore perdia suas folhas rapidamente e era mais fácil de derrubar ou queimar.

Até hoje suspeito que o incêndio ateado pela Volkswagen na sua enorme fazenda de quase 140 mil hectares em Santana do Araguaia, ao sul da área guerrilheira (e quase 50% maior do que ela), teve efeito rápido pela aplicação do napalm. Por irônico, a investigação foi interrompida e sufocada pela denúncia de que o incêndio atingia um milhão de hectares. Como se alastrara por “apenas” 10 mil hectares (ou 100 quilômetros quadrados), 1% do que diziam (com todas as boas intenções que podem levar ao inferno) os denunciantes, a opinião pública se desinteressou. E quem tinha motivos para temer, se aliviou.

Alguns anos depois as denúncias apontaram para outro produto químico perigoso. Desta vez, o Tordon, produzido pela Dow Chemical (da qual foi dirigente no Brasil o general Golbery do Couto e Silva, o “déspota esclarecido” do golpe militar), teria sido utilizado para “limpar” a área do reservatório da hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins. O fato também não foi apurado.

Se documentos como os da guerrilha forem revelados, talvez a necessária reconstituição da história possa ser realizada. Se o for, acrescentará mais um exemplo ao tipo de concepção que levou à ocupação definitiva e à crescente destruição da Amazônia, tendo dois inimigos a destruir: o rebelde e a floresta.

Lúcio Flávio Pinto, 62, é jornalista desde 1966. Editor do "Jornal Pessoal", publicação quinzenal que circula em Belém do Pará desde 1987. http://br.noticias.yahoo.com

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