A tomada – mesmo que só
por meia hora e sem derramamento de sangue – do Congresso Nacional pelos índios
brasileiros foi um evento extraordinário, pelo inesperado, pelo impetuoso e
pelo atrevido. Tanto para os índios, que sempre viram aquele recinto como um
baluarte de poderosos engravatados, quanto para os parlamentares que o veem
como seu santuário de honorabilidade. Os índios o tomaram em chacoalhares de
guerra, impelidos pelo sentimento de revolta com os modos com que as eminentes
autoridades os estão tratando e pela urgência do fazer agora; os parlamentares,
de início embasbacados de susto, logo impuseram sua prerrogativa de templários
da democracia e os mandaram sair incontinenti, como se dissessem, “aos índios
tudo, menos nossa tranquilidade”.
Já a distinta opinião pública
sufocou-se de sentimentos contraditórios, como é de seu feitio em relação à
questão indígena brasileira: se, por um lado, admira o destemor dos mais
humilhados dos brasileiros, por outro, deplora a visível algazarra e a
intempestividade do evento. Réstias de imagens de agressividade indígena saem
do fundo de suas mentes e se transformam em sentimentos de pavor e ojeriza
anti-indígenas.
Para o movimento indígena
(incluindo o movimento socioambientalista, ONGs e religiosos) que programou
esta Semana do Índio, a qual se capitaliza hoje, com tantos eventos
comemorativos e/ou blasfematórios pelo Brasil inteiro, a tomada do
Congresso Nacional foi festejada com um misto de alegria e apreensão. O
movimento sente que chamou atenção para a causa indígena do modo mais ousado
possível, por aparentemente não haver outro mais racional, mas também sabe que
pode vir troco.
O distinto público há de se
perguntar: “Por que os índios estão tão zangados?” Certamente se lembrará que
nos últimos anos a revolta contra hidrelétricas, especialmente Belo Monte, está
no topo da impaciência indígena. Talvez não se lembrem mais que em 2010 mais de
400 índios passaram seis meses em frente ao Ministério da Justiça protestando
contra um decreto administrativo que, entre outras coisas, extinguia os antigos
e sólidos postos indígenas, como representação do Estado na proteção e
assistência das aldeias indígenas. Nunca lhes foi dada uma explicação razoável,
a não ser que o posto indígena era uma instituição retrógrada, da época de
Rondon, como se para os índios tão acusação tivesse a mesma negatividade que
tem para antropólogos e ambientalistas que querem o fim do indigenismo
rondoniano. Nas terras indígenas, onde vive a grande maioria dos povos
indígenas, inclusive muitas das lideranças presentes, a Funai sumiu e com isso
os índios se sentem constrangidos a apelar para vereadores, prefeitos,
fazendeiros, madeireiros ou garimpeiros, sem falar em missionários, para o
mínimo de suas necessidades de urgência, algo que não acontecia no Brasil desde
1910. São os novos indigenistas brasileiros.
Entretanto, a pièce de résistance
da revolta indígena vem da contrariedade a um projeto legislativo, conhecido
como PEC 215, que visa mudar a Constituição para retirar do Executivo, i.e., a
Funai, a prerrogativa exclusiva de reconhecer e demarcar terras indígenas,
passando-a para o Legislativo, i.e., os ilustres parlamentares.
Mudar a Constituição não parece
difícil hoje em dia, nem tampouco o é retirar direitos nela consagrados. Porém,
há que se convir, por que os parlamentares haveriam de se dispor a roer um tão
duro e reprovável osso, qual seja, transformar o Congresso Nacional em balcão
de negociação de terras indígenas, sem que tenha gosto nem condições
administrativas para tanto?! Só para contentar os ruralistas? Ou para chatear
os índios e o movimento indígena?
Difícil achar que a PEC 215 valha
tanto esforço. Difícil achar que haveria razão para tanto. O que me parece mais
razoável é que os parlamentares que assinaram essa PEC queriam mais provocar o
Executivo para arrefecer as demarcações, por um lado, e provocar o movimento
indígena, por outro. Conseguiram. A PEC 215 vai encalhar por aí, sem razão
constitucional nem tampouco viabilidade administrativa, e o Congresso sabe
disso.
Enquanto isso, quem pegou corda
com essa provocação está deixando de lado o essencial do que estão vivendo os
índios: o arrefecimento da simpatia por parte da opinião pública, a diminuição
da responsabilidade do Estado para com suas vidas e sua ascensão no panorama político-cultural
brasileiro, com uma Funai se apresentando inerme e incapaz de resolver os
atritos entre o desenvolvimentismo nacional e os interesses indígenas, e o
desvio de todo o esforço político indígena para lutar contra um fantoche.
A quem interessa isso tudo?
*Mércio Pereira Gomes é
antropólogo (Ph.D. University of Florida, EUA, 1977), professor do Programa de
História da Ciência, das Técnicas e da Epistemologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, ex-presidente da Funai, autor dos livros "Os Índios e o
Brasil", "Antropologia Hiperdialética",
"Antropologia", "O Índio na História", "The Indians
and Brazil", "Darcy Ribeiro", e "A Vision from the
South".
http://br.noticias.yahoo.com
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