Em pouco mais de um semestre de
1972 o Exército brasileiro mobilizou 2,5 mil militares para combater menos de
60 guerrilheiros em uma área com menos de 10 mil quilômetros quadrados em torno
da mitológica Serra das Andorinhas, no Araguaia paraense, na divisa com Goiás
(hoje Tocantins).
Os militantes do Partido
Comunista do Brasil começaram a migrar para a região três anos antes. Sua
intenção era instalar um foco de resistência no local, como os seguidores de
Fidel Castro haviam feito em Cuba. Protegido pela floresta densa e um terreno
acidentado, o foco guerrilheiro devia crescer até fomentar uma guerra
revolucionária contra a ditadura militar, até derrubá-la do poder, que exercia
plenamente.
Três grupamentos foram estabelecidos,
com 31, 23 e 15 integrantes. Quando o Exército os descobriu e começou a
enfrentá-los, não havia dúvida alguma sobre a desproporção de meios. O
principal comandante da operação, o general Antonio Bandeira, reconheceu que os
guerrilheiros “utilizavam armas obsoletas e sofriam grande carência de
munição”. A primeira força militar a caçá-los tinha 380 homens, dos quais 130
fuzileiros navais, tropa de elite.
Em três ou quatro meses o foco
guerrilheiro perdera quase 20% do seu efetivo, formado principalmente por
jovens, a maioria deles estudantes universitários, e de pouco traquejo para
combates. Quando veio a ordem de acabar com tudo, sem deixar sobreviventes, a
matança foi contínua e rápida.
O general Bandeira disse, em seu
famoso relatório, agora acessível na íntegra, que a “guerra dos terroristas” se
transformara em “exercício de adestramento” para seus comandados. Antes de 1972
acabar, porém, o Exército colocou alternadamente 2,5 mil homens no Araguaia,
sendo dois mil da 3ª brigada.
Jargões e argumentos ideológicos
à parte, o que a operação antiguerrilha demonstra, agora que os documentos
oficiais começam a ser divulgados, é a sua incompetência operacional.
Incompetência que não se deve tão somente – e nem principalmente – à falta de
adestramento para atuar, mas ao condicionamento que sobre a atividade militar
exerceu a doutrina da segurança nacional. Doutrina que transferiu seu eixo da
ameaça externa à guerra contra o inimigo interno, os brasileiros adversários do
regime.
Sem ela, com seu exagero na
avaliação do inimigo e na antinomia feroz que impôs aos seus subordinados (o
guerrilheiro era o terrorista, congenitamente mau, sem entranhas humanas, um
animal a abater e liquidar), o Exército teria eliminado rapidamente o foco e
preso seus integrantes, sem descer aos paroxismos de violência e selvageria.
Seria uma história aberta, não um tema proibido, ao qual foram impostos
anátemas implacáveis.
Reconhecer a fraqueza do inimigo
e vencê-lo com o menor desgaste não interessava. Tanto ao comandante militar,
que precisava adestrar a tropa em combate real (e não apenas a simulação, a
regra nos quartéis, crescentemente politizados e sujeitos aos jogos de gabinete
dos seus chefes), quanto a outros aproveitadores, nos negócios ou na política.
A revisão da história da
guerrilha do Araguaia é, portanto, uma necessidade para a sociedade brasileira.
Um país democrático não conviveria com os absurdos praticados nesse período,
fruto do desvio de função das forças armadas, ou do seu exercício não só
abusivo, mas também irracional e incompetente.
Um episódio novo surgiu na
revisão que do tema faz a Comissão Nacional da Verdade. Trata-se de um
Relatório de Apoio Aéreo, produzido em novembro de 1972, paralelamente ao
documento do general Bandeira, pelo tenente-coronel Flarys Guedes Henriques de
Araújo (que, já na reserva, foi secretário de segurança pública do Pará e do
Ceará, conforme era praxe na época: fazer circular os oficiais de informação e
combate).
Ele diz nesse relatório que as
missões pretendidas pelo Comando Militar do Planalto, supervisor final das
ações, “foram executadas no decorrer das operações; há a acrescentar àquele
repertório o bombardeio de três áreas com bombas napalm e de emprego
geral”.
É a primeira confirmação oficial
da utilização desse produto, combinação de gasolina e resina que funcionava
como poderoso desfolhante químico. Aplicado largamente pelos Estados Unidos na
guerra do Vietnam, o napalm se revelou também um terrível agente de doenças
humanas, incluindo o câncer (o que levou à sua proibição e recolhimento, mas
não completo, como se veria).
O documentário
americano Corações e Mentes provocou horror mundial ao mostrar
crianças vietnamitas desesperadas já sem suas roupas e com suas peles queimando
pela ação desse fósforo de alta combustão. Mesmo os militares americanos, que
tiveram contato com o produto, vieram a morrer ou sofreram graves doenças.
Falava-se e às vezes surgiam
denúncias sobre o uso do napalm por fazendeiros e outros pioneiros que abriam
áreas novas na Amazônia nessa mesma época. A ordem em vigor era para botar
abaixo a floresta, substituindo-a por pastagens e cultivos agrícolas,
estimulados por outro combustível poderoso: os incentivos fiscais da Sudam. Com
napalm, a árvore perdia suas folhas rapidamente e era mais fácil de derrubar ou
queimar.
Até hoje suspeito que o incêndio
ateado pela Volkswagen na sua enorme fazenda de quase 140 mil hectares em
Santana do Araguaia, ao sul da área guerrilheira (e quase 50% maior do que
ela), teve efeito rápido pela aplicação do napalm. Por irônico, a investigação
foi interrompida e sufocada pela denúncia de que o incêndio atingia um milhão
de hectares. Como se alastrara por “apenas” 10 mil hectares (ou 100 quilômetros
quadrados), 1% do que diziam (com todas as boas intenções que podem levar ao inferno)
os denunciantes, a opinião pública se desinteressou. E quem tinha motivos para
temer, se aliviou.
Alguns anos depois as denúncias
apontaram para outro produto químico perigoso. Desta vez, o Tordon, produzido
pela Dow Chemical (da qual foi dirigente no Brasil o general Golbery do Couto e
Silva, o “déspota esclarecido” do golpe militar), teria sido utilizado para
“limpar” a área do reservatório da hidrelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins. O
fato também não foi apurado.
Se documentos como os da guerrilha
forem revelados, talvez a necessária reconstituição da história possa ser
realizada. Se o for, acrescentará mais um exemplo ao tipo de concepção que
levou à ocupação definitiva e à crescente destruição da Amazônia, tendo dois
inimigos a destruir: o rebelde e a floresta.
Lúcio Flávio Pinto, 62, é
jornalista desde 1966. Editor do "Jornal Pessoal", publicação
quinzenal que circula em Belém do Pará desde 1987. http://br.noticias.yahoo.com
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